Arquivo da categoria: poemas

Esquina

poema de nei duclós

Procuro alguma coisa bela
na rua que perdeu a alma
a lua, alguma coisa nova

Procuro alguma coisa séria
a prova de que estou na terra
a estrela que não for loucura

Procuro alimentar os olhos
com a luz que brota da calçada
na curva de uma esquina clara

Procuro aquilo que me espera
o corpo que recusa o escuro
a mão que enfim de desamarra

(à página 31 do livro “No mar, veremos”, globo,2001)

nei duclós

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A salvação do mundo

Não existe num verso nada de útil à salvação do mundo.
O poema não pode ter mais que uma casa, paredes
caiadas de branco, os azulejos a rebaterem o sol contra
a sombra, dizendo-lhe o seu lugar. O poema é o meu pai

em sofrimento na cama do hospital, as mãos inúteis que
lhe afagam a dor, estas mãos tão inúteis percorrendo os
versos ao som das palavras. O poema é circunstância de lugar

em imagens atiradas ao chão, reduz à sombra o sol. A casa
essencial, a do poema, memória e salvação de um homem.
O mundo é útil de poesia. Todos os versos são possíveis.

(poema de jorge reis-sá, à página 17 do livro “biologia do homem” – escrituras, 2005)

jorge reis


um poema de arnaldo antunes

publicado no livro “dois ou + corpos no mesmo espaço” (iluminuras, 1997) e disponível  no site oficial dele.

poema de arnaldo antunes


Dentro da memória

A memória é pedra.

Pedra dentro da perda,
que o tempo iguala.

Ele – o que é, sem sê-lo –
arde aos ossos do frio,
às fímbrias do gelo.

Os mandatos da espera
cumprimos.

Às leis do tempo lutamos,
sabedores da sentença.

Mas o tempo dorme
sem toga o gravata.

(poema de jaime vaz brasil, à página 36 do livro “inventário de chronos” – WS editor, 2002)

Angústia

Não vim domar teu corpo esta noite, ó cadela
Que encerras os pecados de um povo, ou cavar
Em teus cabelos torpes a triste procela
No incurável fastio em meu beijo a vazar:

Busco em teu leito o sono atroz sem devaneios
Pairando sob ignotas telas do remorso,
E que possas gozar após negros enleios,
Tu que acima do nada sabes mais que os mortos:

Pois o Vício, a roer minha nata nobreza,
Tal como a ti marcou-me de esterilidade,
Mas enquanto teu seio de pedra é cidade.

De um coração que crime algum fere com presas,
Pálido, fujo, nulo, envolto em meu sudário,
Com medo de morrer pois durmo solitário.

stéphane mallarmé
(poema de stéphane mallarmé, veiculado pelo site escritas.org)

antologia seleciona autores

Antologia


regresso

regresso sempre
o mar é bater na orla
o vento é roer batentes
regresso na umidade
quando as coisas se incham
e podem esconder meus olhos

 

 

 

 

(poema de vera lúcia de oliveira, à página 29 do livro “a poesia é um estado de transe” (portal literatura, 2010)


X

– Garçom, please:
um xis
galinha.
Ovo, tomate e queijo
em fatia fininha.
Alface?
Só se for bem
picadinha.
Capricha na maionese,
separa a salsinha.
Vou levar pra viagem,
vou até o fim da linha.

 

(poema à página 75 do livro “celophane flowers” (Gazeta, 2011), de mauro ulrich)


do que foi

o ter sido

confunde-se
com o havido

com o ido

estranho
esse lugar

onde se chega
sem se ter

saído

(poema à página 69 do “livro de razão” (insular, 2014), de linha lavra. disponível aqui.)


Alvorada em Bangkok

O poder abrir-te como quem abre uma lata
de sardinhas, um olho podre, um baú de sedas velhas,
ou como quem abrisse um vidro de perfume, ou abrisse
(abro) um segredo à polícia política de Bangkok.

Isso não vem de mim, de tu, de ninguém conhecido
que se possa chamar Irmão.
Vem da fereza precisa do cão danado
não morto em Babel.
Vem da natureza ali fechada
no ventre universal
                                    de Buda.

(poema de guilhermino cesar, à página 123 do livro “sistema imperfeito & outros poemas (globo, 1977))


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